quinta-feira, 31 de dezembro de 2015


Evolução de prontuário - Poesia
13/12/14 – EDBH

Aline oberva atentamente tudo que acontece a sua volta e faz contato através da fixação do olhar. Sempre que possível a atendo no momento da alimentação, enquanto oferto a comida faço contato verbal e contato físico. Demonstra gostar muito de comer e consegue demonstrar quando não quer.

Izabela Lopes

#‎desinstitucionalização‬

‪#‎lutaantimanicomial‬

‪#‎foravalencius‬!

- usuária internado em hospital psiquiátrico há trinta e cinco anos.
- nome da usuário foi trocado.

Evolução de prontuário - Poesia
10/04/15 EDBH

Hoje convidei Elias para passear na rua, ele não se manifestou e eu iniciei a condução de sua cadeira em direção a porta. Ele permitiu. Ficamos um longo tempo na praça tomando sol. Zé estava feliz, cantarolando animadamente. Algumas vezes ele tirou a mão do rosto para observar os movimentos da rua. Depois fomos a padaria e eu ofereci um mingau. Foi muito interessante que ele observou longamente o mingau antes de comer. Comeu metade sozinho.

Luiza Morena

#‎desinstitucionalização‬

‪#‎lutaantimanicomial‬

‪#‎foravalencius‬!

- nome do usuário trocado.
- usuário internado em hospital psiquiátrico há trinta e seis anos.


Evolução de Prontuário - Poesia


28/06/2013- EDBH

Encontro Luís sentado na escada comendo guimbas de cigarro. Cumprimento paciente, que fica deslizando sua mão na minha. Paciente me olha e balbucia “banana”. Convido para ir na rua comprar banana. Luís me pega pela mão e me leva até o portão!!! Fomos ao sacolão. Chegando lá ficou bastante exaltado, obervando tudo!!! Dei o braço para ele, pontuo ele ter calma e escolher o que quer. Ele pega a primeira coisa que vê pela frente, um doce. Entrego-lhe o dinheiro e peço para dar para a moça do caixa. Ele aceita sem resistência! Na saída ele pega mais um doce, voltamos e ele entrega o dinheiro. Luís come um doce e combino o outro depois do almoço !!!

É a primeira vez que o paciente sai do hospital!!! Insisto e acompanho!!!

Bárbara Ferreira

‪#‎desinstitucionalização‬

‪#‎lutaantimanicomial‬

‪#‎foravalencius‬!

- usuário internado em hospital psiquiátrico há vinte e oito anos.
- nome do usuário foi trocado.


quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Sem medida



"Joana a doida" a cidade chamava, porque corria pelas ruas e ficava nua. Mulher índia com olhos grandes, pretos como jabuticaba. Dizem que surtou de vez quando foi deixada por um grande amor...

Inicio minha aproximação com calma e cuidado " sái daqui mulher" ela jorrava, então, saía.

Permaneci. Teve bom dia, teve olá, curiosidade, teve padaria, chinelo, sentar no chão, coca -cola, arrotos, risos, carinho no cabelo, confidências, cumplicidade e muitos enrolados de salsicha.

Ela, olhos grandes, me buscava no hospital, desejante de rua.

Como em todo quadro psiquiátrico teve desestabilização, eu gritei, ela gritou, nós berramos, faltou cuidado, faltou ética e profissão .

O portão se abriu tarde da noite com leveza, sem nenhum trinco, imagina! E ela, Joana, desatinou com sua camisola branca horas na frente do hospital; e ninguém viu... ? Ninguém viu? Oi?

Cadê porteiro? E agora?

Joana deseja intensamente,

Joana correu, correu e correu,

Correu até os pés ferirem, até não conseguir mais, até em uma rodovia rodopiar, chocar com um caminhão de bom coração e subir direto pro céu.

...

O corpo de Joana ficou destroçado e de mãos atadas ficou eu e meu coração.

Mas a alma dela, acena lá de longe. Voraz, livre na vida, sem medida, como penso ser um espetáculo de um vulcão.



- o nome da usuária foi trocado.
- internada há vinte e seis anos.

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

"A tradicional família mineira não respeita separação;
não respeita o sujeito;
não respeita a homossexualidade e nem religião,
não olha no fundo dos olhos;
não aceita um não .
A tradicional família mineira não faz parte dessa geração,
condena o negro,
diminui a mulher e finge que não.
A tradicional família mineira é uma gigante máscara de alienação."

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Crônica do desespero -

Às seis horas da tarde,
o rádio toca "Ave Maria",
ele enfia o dedo na guéla e vomita, enfia o braço inteiro magrinho e de pele russa na sua garganta fina e extrai um jato,
escorre uma ducha,
escarra um grito doído,
envolve um urro de socorro por estar findando mais um dia ali.
outro dia sem família,
sem casa,
sem afeto,
outro dia de descaso, com cabelo raspado, sem cigarro,
com comida enfiada a força pela guéla à dentro;
outro dia que se finda para outro igual ou um amanhã pior ressurgir com a "Ave Maria".
outra porra de merda de dia para se "viver".
vai te fuder Ave Maria!
vô - mi - tá.


hospital psiquiátrico

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Cansei de embalar crenças.
O ser humano escorre por todos os cantos de forma lasciva.
Não tem tempo pra acolhida,
pra parada,
pra olhar dentro dos olhos e respirar junto;
só se esvai,
atropela.

terça-feira, 26 de maio de 2015

hoje eu conheci um cachorro cujo a carinha assustadoramente me lembrava você,
a forma leve e encantada de me olhar,
ele deitou seu rosto canino sobre meus pés e me fitou firmemente,
eu, segurei meu choro e acariciei sua cabeça,
esse cachorro sabe das coisas.

sexta-feira, 1 de maio de 2015

A proximidade dos trinta me fez entender o quão valioso e saboroso é tomar café,
abriu meus olhos para aproveitar meu tempo com quem vale a pena, com quem faz minhas pupilas dilatarem e cuida da minha fragilidade,
me permitiu chorar no meio da rua,
me provou que ouvir rock alto me faz respirar melhor e dá coragem quando tudo parece não ter mais jeito,
fez com que eu amasse mais ainda estar sozinha numa tarde de domingo,
me fez comprar lingeries maravilhosas, mostrou-me que na cama eu posso fazer o que eu quiser e me ensinou amar eu ser eu mesma,
fez com que eu entendesse que no final dá tudo certo.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Felicidade Clandestina


Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria. Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como "data natalícia" e "saudade". Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia. Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria. Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu nao vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam. No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez. Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte"com ela ia se repetir com meu coração batendo. E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra. Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. As vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados. Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler! E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer. Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo. Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada. As vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.

Clarice Lispector