segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Uma tarde qualquer, num lugar qualquer...


Entro no portão da frente do hospital psiquiátrico e logo vejo Joana, que tem falado pouco, quase nada... Aproximo, convido-a para sair, diz que não, pergunto se está bem, ela parece não me ouvir. Vejo-a acariciando a barriga que é protuberante, pergunto se dói, ela me diz que está dura pois almoçou. Mostro para ela um par de chinelos e pergunto se ela quer ir na padaria, informo que estarei no hospital até o final do dia. Ela se afasta. Respeito.
Aproximo da recepção e de longe observo várias pessoas sentadas nas cadeiras de rodas, um tempo parado, um rádio ligado, barulhos de gritos de dentro do hospital e um vômito no chão. Logo vejo Joaquim se aproximar, abaixar o corpo e pegar o vômito com as mãos em concha fazendo um movimento de levá-lo a boca. Grito para ele não fazer isso! Meu estômago embrulha. Tereza, outra paciente que estava perto tenta tirar o líquido cor de rosa com pedaços de comida da mão dele e o afasta do local. Chego na recepção. Ricardo, outro usuário passa, bate no Rafael(também paciente) e uma briga se inicia na minha frente, coloco os meus braços, minha voz alta e enfim o meu corpo inteiro para impedir.
No caminho da enfermaria vejo Dona Guiomar, uma senhorinha idosa, negra e muito querida por todos. Percebo seus cabelos cortados recentemente, curtinhos. Curtinhos demais. Curto institucionalizado. Curto doente. Curto manicômio. Meu coração soluça com seu novo corte de cabelo. Pergunto como está, me diz que bem, muito carinhosa, falo do cabelo e ela me diz que estava feio – nunca pode tê-lo de outro jeito, é de se entender. Outro dia, depois de uma prosa boa que tivemos me disse que Joviano (marido já falecido há anos) disse pra ela que gosta de mim e me chama para dormir em sua casa, respondo que naquele dia não dava, mas em outro dia eu dormiria. Ela fica satisfeita. Eu também, afinal, já sou “de casa”.
Chego na enfermaria para ver Maria Claudia que vem de uma internação clínica em outro hospital para a sua já conhecida e rotineira internação psiquiátrica. Ela está sem roupa, coberta com um lençol e cheia de fios que a conectam a uma máquina. Ela abre os olhos, me vê, não me reconhece. Assusta com medo de eu querer fazer alguma intervenção clínica nela. Tento lhe fazer carinho na cabeça, não aceita. João, enfermeiro, se aproxima e diz para ela conversar comigo, que sou eu quem a levo para passear, pergunto se quer ir tomar chuva na praça, lembrando do dia que voltamos as duas corridas,ela na cadeira de rodas e eu a empurrando da rua pro hospital embaixo de um torô rindo muito. Mas Maria Cláudia está fraca, não sustenta a conversa.
Vou ver Rosana que está encurvada no leito do canto olhando para a janela. Logo ela me olha, parece me reconhecer e sorri. Comento com ela sobre suas unhas que estão pintadas e bonitas. Delicio com ela o vento que vem da janela. Fico ali, do lado, faço carinho no braço e ela sorri muito. Ficamos ali, juntas, companheiras por algum tempo.
Crislene que também voltou de uma internação clínica e que como Maria Cláudia está com sonda no nariz e ligada à maquina grita. Aproximo. Pede água. Ganho liberação para molhar um algodão e colocar na sua boca. Ela aceita, mas seu grito que não é de dor física não cessa e ecoa no fundo da minha alma.
Saio desse setor e vou andando pelo hospital. Antônio, cadeirante, me aponta e entrega o recipiente prateado onde se urina, entendo que é para esvaziar. Pego, levo ao banheiro, jogo fora o que está dentro e passo uma água como me ensina Arthur, técnico de enfermagem, devolvo. Nilo, outro cadeirante que está do lado me vê e ri para mim com o sorriso mais lindo do mundo, respondo. Tive vontade de dar um grande abraço nele, mas minha atenção logo foi chamada para José Paulo que veio me dizendo estar sofrendo e logo deitou no chão. Peço para levantar, sugiro ir para a cama, ele não responde, faço uma massagem carinhosa nas suas costas que ele entende por cosquinhas e ri muito, logo levanta e sai andando pelo hospital afora.
De volta ao casarão, parte do hospital onde dorme a maior parte das mulheres, sento e decido ligar para familiares. Começo ligando para Creusa, filha de Dona Guiomar, uma senhorinha meiga demais de quem falo acima, ouso dizer que a mais meiga que já conheci. Telefone desligado, na última semana consegui falar com ela que combinou de vir ver a mãe, mas não apareceu. Já tem pelo menos seis meses que não vem visitá-la e nessa última visita me disse que preferia que a mãe fosse para um asilo que para a sua casa, porém diz que se não tivesse jeito e o hospital realmente for fechar ela a recebe em casa.
Ligo para a cidade de Tarumirim novamente no intuito de outra vez tentar uma busca pela irmã de Maria Cláudia, mas não consigo falar com a coordenadora de saúde primária que já me ajudou anteriormente sem sucesso. Tentei a rádio da cidade também, vou tentar em breve de novo. Maria Cláudia tem muitas saudades de Marina (sua irmã com quem não tem contato há anos).
Ligo para a irmã de Joana que mora na cidade de Turvolândia, que já me disse que não foi criada com a irmã e que não tem interesse em visitá-la, mas como eu percebi um certo afeto por ela ligo novamente, não atende. Ligo para a secretaria de saúde de Pouso Alegre para saber quando vêm visitar Joana e Olívia, pois a cidade está para criar um Serviço Residencial Terapêutico - porém o processo não evolui .
Vou evoluir o prontuário de Olívia com essa informação e leio na parte que diz situação familiar atual : “Assistente Social e equipe de enfermagem relatam situação de abandono após falecimento da mãe que a visitava anualmente. Inúmeras de tentativas de contato telefônico com a família sem êxito. No ano passado, a usuária recebeu roupas via Sedex com o seguinte endereço de remetente: xxxxxxxxxx, Pouso Alegre/MG. No telefone disponibilizado pela Clínica Serra Verde atende uma secretária eletrônica onde foi deixado recados, sem qualquer retorno. Enviado telegrama ao endereço que consta no prontuário comunicando a transferência da paciente e o endereço do Hospital Sofia Feldman.”Meu coração diminuiu por alguns minutos.
Logo vem Joana muito sorridente e me pede o par de chinelos. – Vamos na padaria, Joana? - Eu pergunto. Ela diz que sim. Irradio! Há mais de um mês ela não quer sair. Com custo consigo trocar a camisola por um vestido e vamos no estabelecimento onde ela faz um lanche.
Na volta José Paulo me pede um cigarro, volto e compro para ele que fica contente.
Lucas vem chorando e balbuciando querendo sair para comer algo, falo para ele que não posso hoje, que não tenho mais dinheiro, ele esbraveja, mas entende.
Reunião de setor. Lúcia,paciente, participa sentada em uma cadeira e Vera também, estando fumando debaixo do balcão. As questões colocadas já me fogem a mente. O dia foi turbulento de barulhos, situações, cheiros e sensações.
Dezessete horas, caminho para ir embora. De longe Zé Luíz, cadeirante, me percebe indo e grita: “Vai com Deussss!” que ressoa com doçura na minha mente até agora.


*os nomes dos usuários foram trocados